terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Debate sobre o projeto de Código Comercial

Nelson Eizirik, do escritório Carvalhosa e Eizirik Advogados - "O novo Código Comercial e a lei das S/A" (clique aqui)

Fábio Ulhoa Coelho - "A sociedade anônima no projeto de Código Comercial" (clique aqui)

Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França - "O projeto do Código Comercial" (clique aqui)

 

O novo Código Comercial e a lei das S/A

Nelson Eizirik*

Vem sendo divulgado que estaria em gestação um novo Código Comercial, criando-se na Câmara dos Deputados uma comissão especial para cuidar de sua tramitação. A propósito, o defensor público da ideia, o jurista Fábio Ulhoa Coelho, Professor Titular de Direito Comercial da PUC/SP, publicou recentemente a obra "O Futuro do Direito Comercial", na qual minuta um Anteprojeto de Código. As linhas que seguem visam a estimular o debate sobre o tema, reconhecendo a seriedade da iniciativa e o rigor acadêmico de seu proponente.

Tenho dúvidas sobre a necessidade e pertinência de um "novo" Código Comercial. É certo que alguns valores essenciais do Direito Comercial, mencionados na minuta de Anteprojeto - vários dos quais previstos na Constituição - merecem ser discutidos e eventualmente "resgatados": a liberdade de iniciativa e de competição; a função social da empresa; a proteção jurídica aos investimentos privados; a licitude do lucro na exploração regular da empresa. Ninguém contesta que os títulos eletrônicos e o comércio na internet estão a merecer uma regulação própria. Também é indiscutível que o tratamento conferido pelo Código Civil de 2002 (clique aqui) às sociedades, particularmente as limitadas, é inadequado e "engessador" das atividades empresariais. Ademais, devem ser contidos "arroubos" das autoridades fiscais e previdenciárias, às vezes aceitos em decisões judiciais, de responsabilizar os sócios (inclusive minoritários) e administradores por dívidas da pessoa jurídica.

Por outro lado, temo que "codificar" tais valores condene-os à esterilização e imobilidade, o oposto do que se deseja para o Direito Comercial, necessariamente dinâmico e adaptável às inovações tecnológicas e econômicas. A noção totalizante de Código não estará superada pela emergência de leis especiais e sua regulamentação administrativa, "micro-modelos" jurídicos maleáveis e adequados às atividades que disciplinam?

Ademais, em matéria de Direito Societário e Empresarial, o que vemos, crescentemente, são iniciativas inovadoras dos particulares, reunidos em entidades privadas, mediante a autorregulação de suas atividades. Não se pode ignorar, por exemplo, o notável sucesso do "Novo Mercado", criado pela Bolsa de Valores, que vem permitindo a conjugação da proteção aos investidores com a capitalização de mais de uma centena de companhias abertas e o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, sem (e talvez por isso) que uma norma legal tenha sido editada. No mesmo sentido, é de se mencionar as atividades desenvolvidas pela ANBIMA, na autodisciplina da conduta dos bancos de investimento e gestores de recursos, ou do CONAR, também entidade privada, que há muito regula os adequados padrões éticos da publicidade.

Se tenho dúvidas sobre o modelo mais adequado à regulação da atividade empresarial – se o codificado ou se o multifacetado e aberto – estou firmemente convicto de que incluir a disciplina das sociedades por ações no Código Comercial seria manifesto equívoco, capaz de gerar efeitos desastrosos. A vigente Lei das S/A (lei 6.404/76 – clique aqui) resultou de Projeto elaborado pelos juristas Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, amplamente discutido com a sociedade e no Congresso Nacional. É absolutamente consensual entre os advogados e empresários que se trata de lei excelente, verdadeiro monumento legislativo, que instituiu e regulou adequadamente, dentre tantas outras matérias, o acordo de acionistas, a transparência de informações das companhias abertas, os deveres fiduciários dos administradores, criou novos valores mobiliários e bem ordenou os antigos, disciplinou a figura do acionista controlador, assim como a oferta pública de alienação do controle. Tão boa é a lei que seguidamente "descobrimos", ao ler com mais cuidado seus dispositivos, novas possibilidades de sua aplicação aos casos concretos com que nos deparamos na prática do Direito Societário.

Ademais, a lei das S/A constitui um magnífico sistema de ordenação das companhias, fruto da experiência prática e conhecimento teórico dos redatores do Projeto. O conceito de "sistema", desde sua origem grega, significa o composto, a totalidade construída, integrada por várias partes necessariamente ordenadas e interligadas. O ordenamento contido na lei das S/A é tão sistemático que permite a sua interpretação "por dentro", mediante a análise conjunta de seus dispositivos, para depois aplicá-los aos fatos. Ademais, resistiu a "provas de fogo", sem ter sua estrutura lógica abalada, como foram as reformas tópicas e mal redigidas realizadas em 1989, 1997 e 2001. Foi enriquecido nos últimos anos com as modificações no tratamento das demonstrações contábeis, adequadamente regulamentadas pela CVM. Agora, mediante MP, pequenos ajustes estéticos ajudarão a manter sua atualidade, agilizando o processo de emissão de debêntures e permitindo a realização de assembleias de acionistas virtuais.

Se assim é, por que incluir a disciplina das companhias no Código? Em nome da consagração dos valores antes mencionados, que se deseja resgatar? Ora, a lei das S/A já contém os valores essenciais à regulação das companhias, sedimentados pela doutrina, jurisprudência e prática dos negócios: a sua legítima finalidade lucrativa; a limitação da responsabilidade dos acionistas; o princípio majoritário; a tutela de direitos essenciais dos acionistas minoritários; os deveres fiduciários do acionista controlador e dos administradores; o regime da transparência das informações.

Não me parece razoável simplesmente "transportar" as disposições da lei 6.404/76 para dentro de um Código em nome de sua completude. Primeiro porque grande seria a tentação dos legisladores de modificar alguns de seus artigos, com resultados imprevisíveis. Segundo, porque, ainda que nada de sua substância fosse modificado, seus artigos seriam renumerados, sairiam do lugar, mudariam de seção ou capítulo, tudo a dificultar a vida dos que a consultam. Ora, uma boa lei é um bem público, como um parque, para ser usada pelos destinatários. Para que mudar os bancos e as árvores de lugar, se os usuários já sabem onde encontrá-los e como desfrutar de seus benefícios? Tratar no Código só das companhias fechadas e deixar a vigente lei das S/A cuidando das abertas, ou, pior ainda, incumbir a CVM, já tão assoberbada, de toda a sua regulação, não faria o menor sentido, seria mutilar um sistema bem estruturado sem qualquer utilidade prática.

Em "O Círculo dos Mentirosos", Jean-Claude Carrière conta a seguinte história do pícaro personagem Nasreddin Hodja, habitante de algum país do Oriente Médio: um dia, estando ele a cercar sua casa com miolos de pão, um homem que passava perguntou a razão dessa inusitada prática, ao que ele respondeu: - Protege-me dos tigres. – Mas não há tigres aqui. – Então, você está vendo como funciona bem! Esperemos, para o bem de nosso Direito Societário, que a ameaça de inclusão da lei das S/A no Anteprojeto de Código Comercial seja como os imaginários tigres de Hodja.

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*Advogado no Rio de Janeiro e em São Paulo, sócio do escritório Carvalhosa e Eizirik Advogados

A sociedade anônima no projeto de Código Comercial


Fábio Ulhoa Coelho*

Espalha-se pelo país, nos meios políticos, empresariais e profissionais, salutar debate sobre a necessidade de um novo Código Comercial. Na verdade, discute-se não somente o quanto se justifica, hoje, a atualização desta codificação. Alguns acadêmicos, legisladores e profissionais do direito avançam já no detalhamento da estrutura e conteúdo do novo Código.

Nelson Eizirik, dileto amigo e ilustre jurista, é um dos que se apresentou ao debate, por meio de instigante artigo, veiculado no Migalhas, em que enfrenta as duas questões básicas postas pelo movimento em torno do Código Comercial: "precisamos de um novo Código Comercial?" e "que Código?".

A primeira questão diz respeito à oportunidade da elaboração de um diploma o quanto possível sistematizado e completo para a disciplina das relações entre os empresários. Eizirik expressa, aqui, uma dúvida sobre a pertinência da proposta, sem se posicionar contra, nem a favor. Sua dúvida, que é também a de outros juristas, gravita em torno da teoria dos microsistemas.

A segunda questão suscitada pelo movimento em torno do Código Comercial e igualmente enfrentada por Eizirik relaciona-se à abrangência que deve ter a Codificação. Para ele, o Código não deveria tratar da sociedade anônima. A disciplina atual, abrigada em diploma específico de excepcional qualidade (a lei 6.404/76 - clique aqui), seria já satisfatória, não se justificando alterações de monta. Tampouco o entusiasma a simples transposição dos dispositivos para o corpo sistematizado do Código. Aqui, Eizirik não tem nenhuma dúvida. Está plenamente convencido da impropriedade que resultaria de um novo Código Comercial cuja abrangência alcançasse a disciplina das companhias.

O objetivo desta breve manifestação é posicionar-me diante das duas questões eruditamente apontadas por Eizirik; questões que, como se verá, fundem-se em alguma medida, em torno da teoria do microsistema. É certo que essa teoria demanda uma discussão bem mais complexa, que procurarei sintetizar nesta manifestação, acentuando seus principais lineamentos.

A teoria dos microsistemas foi desenvolvida há cerca de trinta anos pelo civilista italiano Natalino Irti. Trata-se de teoria voltada especificamente para a experiência legislativa da Itália. Lá, e somente lá, em 1942, foi aprovado um Código Civil (clique aqui) com um larguíssimo âmbito de aplicação, compreendendo, além das matérias típicas do direito civil, também as da empresa e as do direito do trabalho. Ao defender a alteração da função primordial do Codice Civile, passando de norma "geral" para norma "residual", Irti tem em vista constante e exclusivamente o direito de seu país. Por força da ideologia fascista, então reinante na Itália, e, a rigor, em razão do uso do direito privado na busca da reafirmação da identidade nacional, o Código Civil italiano tem abrangência única, verdadeiramente extensa. Assim, Natalino Irti não propôs uma teoria para todos os direitos, nem mesmo para todos os direitos de filiação românica. Tem em perspectiva somente o direito peninsular.

Por outro lado, a teoria dos microsistemas, de Irti, é incongruente sob o ponto de vista lógico e incompatível com a teoria contemporânea dos sistemas (Luhmann). Trata-se de uma formulação logicamente inconsistente e teoricamente anacrônica.

A incongruência lógica advém do enunciado de que o microsistema possuiria repertório próprio, além do partilhado com o polisistema. Ora, se assim é, o microsistema contém o polisistema (e nunca poderia ser, sob o rigor da lógica, contido por este). A premissa adotada por Irti simplesmente não se sustenta, quando se trata a questão rigorosamente pela lógica.

Por outro lado, sob o ponto de vista da contemporânea teoria dos sistemas, o direito tem sido entendido como um sistema autopoiético. Significa dizer que ele próprio se define, enquanto se estrutura e se produz, independentemente do meio circundante. Esta característica é denominada, por Luhmann, de "completude funcional". Pois bem, a noção de um microsistema não tem, neste contexto, sentido nenhum. O "micro" reporta uma nítida relação de "tamanho" com outro sistema, que é necessariamente externo a ele. Não há como conciliar-se esta relação com a noção de completude funcional. Se um (micro)sistema depende de (macro)sistema para se definir, ou ele não é sistema, ou não é autopoiético. De um modo ou de outro, quem acompanha a evolução da teoria dos sistemas, não pode senão afastar a dos microsistemas como um anacronismo.

Mas, para prosseguir no debate, é necessário, malgrado sua seriedade, "por entre parêntesis" estas três objeções (uma teoria para o direito italiano, sem congruência lógica e desatualizada). Cabe operar-se, no plano da argumentação, com a noção difundida e intuitiva de microsistemas: um diploma fundamental (Código, estatuto ou lei) que estrutura uma área do direito, que se insere em outra ou outras áreas de maior espectro. Por exemplo: o direito do consumidor, estruturado pelo Código de Defesa do Consumidor, constitui um microsistema, dentro do direito privado.

Pois bem, nesta noção difundida e intuitiva da categoria em foco, não há como negar que o direito comercial é, desde a sua origem, um microsistema do direito privado. Os seus desdobramentos (societário, cambiário, etc) são algo como um micro-microsistema. Em tal perspectiva, e já entrando na segunda questão suscitada por Eizirik, o Código Comercial é o diploma estruturador do microsistema de direito comercial, enquanto algumas leis estruturam os micro-microsistemas do direito comercial.

Noto que nem todos os desdobramentos da área precisam ou devem se estruturar como um micro-microsistema. A propriedade industrial, os procedimentos de falência e recuperação e a sociedade anônima (mas não todo o direito societário) são exemplos de capítulos do direito comercial que convêm estruturar em micro-microsistemas. A conveniência de estruturação de alguns dos sub-ramos do direito comercial em micro-microsistemas nada diz da conveniência, ou não, de estruturação do direito comercial como um microsistema no direito privado.

Tudo se resolve, no final, numa pontual questão de política legislativa, que aponte a melhor solução para um determinado país, em certo momento de sua trajetória histórica; ou seja, como é melhor organizar os sistemas, microsistemas e micro-microsistemas legislativos no Brasil, neste início do século XXI. Se na Itália, durante o processo de integração econômica com os demais países europeus, alguém vislumbrou uma "era da decodificação", isto não significa que o nosso país, ao entrar numa etapa singular de sua história, ocupando uma nova posição na economia global, deva se privar da estruturação de sua ordem jurídica que lhe pareça mais adequada. Colômbia, em 1995, e Ukrânia, em 2003, aprovaram novos Códigos Comerciais, somente para citar dois exemplos de países, em que a elite jurídica não toma apressadamente por universal qualquer coisa que se fale nas academias européias de direito.

O PL 1572/2011 (clique aqui), apresentado pelo Deputado Vicente Cândido, que institui o novo Código Comercial, adotou, o modelo de sistematização do direito comercial acima indicado. Quando aprovado, ele conviverá, de um lado, com o Código Civil, pondo-se em relação a este como um microsistema; e conviverá, de outro, com a lei da propriedade industrial (lei n. 9.279/96 - clique aqui), com a lei falimentar (lei 11.101/05 - clique aqui) e com a lei das sociedades por ações (lei n. 6.404/76 clique aqui), que não serão revogadas. Estas serão, em relação ao Código Comercial, estruturadoras de micro-microsistemas.

Estando o direito comercial, hoje, no Brasil, reclamando urgente sistematização, um Código Comercial cumpre melhor esta função do que uma série não sistematizada de diplomas legais específicos de seus desdobramentos. A economia brasileira precisa de uma codificação que enuncie os princípios próprios do direito comercial, para que as relações entre empresários deixem de ser consideradas e julgadas à luz de princípios "sistemicamente alienígenas", como são os do direito civil e os do direito do consumidor.

Acolhendo, contudo, as consistentes ponderações no sentido da conveniência de se manterem as sociedades anônimas ao abrigo da atual lei, o Projeto de Código Comercial disciplina apenas aspectos não previstos na Lei 6.404/76, como, por exemplo, a composição da mesa das assembleias, a responsabilidade de seus integrantes, o poder de controle exercido por não acionistas, o exercício do voto atento ao cumprimento da função social da empresa, etc. O Projeto de Código Comercial em tramitação na Câmara dos Deputados é, portanto, plenamente compatível com a manutenção do atual tratamento legislativo dispensado às sociedades anônimas.

Dedico este artigo ao meu sogro, Carlos Augusto Moreira Filho.

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*Advogado e professor titular da PUC-SP

 

 

 

Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França

O projeto do Código Comercial

 

Conforme já noticiou este prestigioso jornal eletrônico, acha-se em tramitação um projeto de novo Código Comercial. Segundo consta, o seu autor é colega de turma do Ministro da Justiça, que teria declarado, no Congresso Nacional, que faria de tudo para aprová-lo no próximo ano.

O procedimento de consulta pública sobre o projeto iniciou-se no dia 2 p.p., no auditório da Associação dos Advogados de São Paulo – entidade da qual tenho o orgulho de ter sido conselheiro por mais de dez anos e que não costuma se omitir no debate das grandes questões jurídicas nacionais.

Naquele dia, tive a oportunidade de declarar, perante o autor do projeto, minha total contrariedade à ideia de um novo Código Comercial, bem como ao conteúdo do projeto que, com a devida vênia, é de péssima qualidade.

A ideia de código, em primeiro lugar, é algo deslocado no tempo. Só se justificaria para exprimir um conjunto de regras jurídicas gerais, o que o projeto em questão não faz. Pelo contrário, é de uma exuberante prolixidade, contendo 670 artigos, afora incisos e parágrafos, e pretende regular matérias as mais díspares, tais como o empresário e as sociedades empresárias, o estabelecimento, as obrigações e contratos empresariais, os títulos de crédito (entre os quais os "títulos armazeneiros"), a recuperação judicial, extrajudicial e a falência, o agronegócio, o "processo empresarial", etc., propondo ainda alterações nos Códigos Civil (clique aqui) e Penal (clique aqui).

Deixa de lado, porém, matérias importantíssimas: cheque, cédulas de crédito industrial, investimentos coletivos, como são os fundos de investimento, em todas as suas modalidades, só disciplinados em regulamentos da CVM, seguros, contratos derivativos, etc. E as deixa de lado porque, naturalmente, é inviável a ideia de um código oni-abrangente.

Pretende, contudo, ser um código "principiológico". Leiam-se os princípios dispostos nos seus artigos 4º, 5º, 6º e 7º: estão todos na Constituição Federal (clique aqui) (que já é também exuberantemente prolixa), não havendo necessidade de repeti-los em uma lei. Os demais "princípios" são também totalmente desnecessários ou equivocados (leia-se, para se ter gritante exemplo, aquele constante do art. 113, inciso III).

No tocante ao direito societário, pretendeu regular as sociedades empresárias, entre as quais as sociedades anônimas (art. 144, parágrafo único: "No que não for regulado neste Código, sujeita-se a sociedade anônima a lei especial"!), mexendo com o diploma legislativo porventura mais esplêndido que se produziu na segunda metade do século passado em nosso país. Leiam-se os arts. 144 a 149, 151 a 154, 158, 159 e 161 do projeto: são absolutamente inúteis, pois já constam da Lei de S/A (clique aqui).

Relativamente aos temas realmente importantes – e da ordem do dia – das sociedades anônimas (conflito de interesse: formal ou substancial?; o sistema de invalidades), o projeto é totalmente omisso.

Segundo se prometeu no debate mencionado de início, esta parte do projeto, concernente às sociedades anônimas, será extirpada, mas é evidente que a tal "principiologia" do projetado Código afetará a lei 6.404/76. No que diz respeito às sociedades limitadas, o projeto não inova em absolutamente nada o sistema do Código Civil.

Tem-se criticado – e eu mesmo fui um desses críticos – a sistemática do Código, sobretudo no tocante aos quóruns elevados para aprovação de diversas matérias. Deve-se lembrar, contudo, que é tradição nacional o desrespeito aos direitos da minoria.

O Brasil é o único país do mundo a conter uma previsão de dividendo obrigatório mínimo. E isso não bastou para a proteção da minoria: foi necessário acrescentar ainda o § 6º ao art. 202 da LSA a fim de que os lucros não destinados a reservas sejam obrigatoriamente distribuídos como dividendos. Com quóruns elevados, há efetiva proteção à minoria: quem não detém ¾ do capital social – o que, obviamente, implica um maior custo – é forçado a dialogar com a minoria. Mas, se o problema é este, mudem-se os quóruns.

Não é necessário um novo Código Comercial. No que diz com o direito das obrigações, sua unificação segue a sábia lição do nosso grande Teixeira de Freitas que, décadas antes de Vivante, em 20/9/1867, a propôs ao Governo Imperial. Muitos outros equívocos do projeto poderiam ainda ser apontados, mas o reduzido espaço deste artigo é insuficiente para tanto.

O signatário finaliza com a questão central: qual é a legitimidade de um autor só, por mais ilustre que possa ser, para pretender elaborar, isoladamente, um projeto de Código Comercial? Só na ditadura se viu isso. O extraordinário jurista que foi o Prof. Miguel Reale não se sentiu capaz – embora o fosse, dada a incontestada vastidão e profundidade do seu saber – de elaborar sozinho um projeto de Código Civil. Elegeu uma comissão de altíssimo nível - Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Clóvis do Couto e Silva, Ebert Chamoun e Torquato Castro – para fazê-lo, tendo apenas supervisionado os trabalhos. Essa exemplar lição de humildade, própria dos verdadeiros sábios, poderia aqui bem ser aproveitada – se o fizesse, o autor do projeto apenas iria se engrandecer.

Melhor fariam o Ministro da Justiça e o deputado Vicente Cândido, até mesmo em obséquio a um desejável processo democrático de elaboração das leis se, ao invés de darem prosseguimento ao projeto tal como hoje se apresenta, com sérias deficiências que não poderão ser sanadas no curso do processo legislativo, retirassem-no de pauta e constituíssem uma comissão de juristas, congregando os nossos melhores comercialistas (entre os quais o signatário deste artigo, evidentemente, não se inclui), para discutir e, se for o caso, preparar um consistente anteprojeto de lei de aprimoramento da nossa legislação empresarial – o que muito mais facilmente poderá ser obtido através da revisão das leis empresariais em geral, notadamente do Livro II do Código Civil.

Esse desiderato, segundo nos parece, não pressupõe um novo Código Comercial, o qual não tinha sido reclamado por ninguém até agora, e seguramente não será alcançado pelo projeto que ora tramita no Congresso Nacional.

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*Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França é advogado e Professor Doutor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.