Um teste para o mercado de CRI: o caso Banco Rural
Marcelo Cosac
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- segunda-feira, 23/9/2013
O processo de liquidação do Banco Rural trouxe novas e recorrentes questões para a indústria de FIDC - Fundos de Investimento em Direitos Creditórios. Mas quem poderia dizer que tal evento também poderia constituir um importante estudo de caso para o mercado de CRI - Certificados de Recebíveis Imobiliários, principalmente pelo caráter pedagógico da enumeração de diversos fatores, que em conjunto, podem colocar o título em situação de risco.
A operação de CRI em questão foi realizada pela Companhia Província de Securitização de Créditos Imobiliários (Província) em 22/12/09, tendo sido emitidas duas séries deste título, uma de classe sênior, denominada pela securitizadora de Preferencial, e outra de classe júnior, denominada Subordinada. A série sênior teve valor nominal na emissão de R$ 35,0 mi, é corrigida monetariamente pelo IPCA, vence em 22/12/19 e paga juros anuais remuneratórios de 8,0% a.a.. A série júnior, ou subordinada, somava R$ 7,0 mi na emissão, também é corrigida monetariamente pelo IPCA, vence em 22/12/23 e paga juros de 9,17% a.a.. O pagamento da série sênior é feito anualmente, utilizando o sistema de amortizações constantes. Já os títulos subordinados têm carência de 10 anos. A operação foi a única realizada por esta securitizadora e tem como agente fiduciário a Pentágono DTVM. Atuaram também na operação a Integral Investimentos, como estruturador, e o escritório Felsberg e Associados, como assessor jurídico. A LF Rating classificou os títulos sênior da operação.
Os CRI têm como lastro uma CCI - Cédula de Crédito Imobiliário representativa, de forma parcial, de um contrato de locação típico celebrado entre o Banco Rural, locatário, e o Fundo de Investimento Imobiliário INCA II (INCA II), locador e emissor da CCI. Sob administração da SOCOPA e gestão da Integral Investimentos, o fundo foi criado especialmente para essa operação, adquirindo os imóveis do próprio Banco Rural com o compromisso de locar para este, o que se constitui uma operação comumente denominada pelo mercado como sale and leaseback.
Os imóveis de propriedade do INCA II são compostos por três lojas, nove pavimentos de salas e 139 vagas de garagem do Edifício Tavex, localizado em Belo Horizonte, Minas Gerais. O restante do prédio é de propriedade de terceiros, que não participam da operação. Contudo, o relatório do laudo de avaliação constante no prospecto da operação, produzido pela Technobanc, informa que o valor total de avaliação, de R$ 53,47 mi, é referente a quatro lojas, nove pavimentos de salas e 154 vagas de garagem. O relatório de classificação de risco publicado pela LF Rating, por sua vez, difere deste último ao apontar como 155 o número de vagas de propriedade do Banco Rural e suas coligadas.
O Contrato de Locação é regido pela lei 8.245/91 (lei de locações), tem prazo de 14 anos e estabelece o aluguel anual a ser pago até o fim da primeira quinzena dos meses de dezembro no valor de R$ 5.433.120,00, o qual é reajustado anualmente pelo IPCA. De acordo com os termos do contrato, o locatário está autorizado a sublocar os imóveis, parcial ou totalmente, para qualquer empresa integrante do Grupo Rural, sem prejuízo das obrigações do locatário. O contrato também deixa claro que em caso de rescisão do contrato a multa a ser paga é correspondente ao valor necessário para liquidar integral e antecipadamente a emissão do CRI.
A CCI emitida pelo fundo imobiliário é representativa parcialmente do contrato de aluguel supracitado. Os créditos imobiliários representados por esse ativo equivalem a 96,42% dos direitos de crédito oriundos do contrato, totalizando, na época da emissão da CCI, um valor nominal de R$ 73,3 milhões. A cédula tem vencimento final em 13 de dezembro de 2023.
Não há nenhuma garantia vinculada aos direitos creditórios escriturados na CCI. As multas e encargos moratórios em caso de rescisão são aquelas contidas no contrato de locação: juros moratórios à base de 1,0% ao mês e multa moratória correspondente de 2,0%, incidente sobre o total do débito apurado durante o período de atraso.
A CCI foi cedida à securitizadora por R$ 41,7 mi. O contrato de cessão estabelece que nos casos de inadimplemento ou eventos de vencimento antecipado fica facultada à cessionária devolver a CCI à cedente, ficando esta obrigada a pagar à cessionária o valor de liquidação do CRI. Entre os Eventos de Vencimento arrolados no contrato de cessão estão: (i) o não cumprimento, no vencimento, das obrigações das partes da operação e (ii) a liquidação extrajudicial dos garantidores do CRI, do alienante fiduciante e/ou do fiador, como definidos abaixo.
Como garantia ao CRI, além do Regime Fiduciário, foi constituída a alienação fiduciária das cotas do INCA II, detidas pelo único cotista do fundo imobiliário, o Sr. Ellos José Nolli. A garantia poderá ser executada na hipótese de inadimplemento da boa e fiel liquidação dos CRI ou na ocorrência de um evento de vencimento antecipado. Ademais, o produto da venda deverá ser aplicado na amortização ou liquidação das obrigações garantidas. Caso os recursos não sejam suficientes para quitar as obrigações, o cotista do fundo imobiliário continuará responsável pelo valor remanescente da dívida. Já se a garantia for executada, ainda sem o vencimento das obrigações garantidas, e for excluída a hipótese de declaração de vencimento antecipado, o alienante fiduciante deverá promover o reforço das garantias.
Uma fiança foi dada pela empresa Trapézio - holding financeira da qual pertence o Rural - ao emissor dos títulos, a Província, com o objetivo de garantir o cumprimento das obrigações da securitizadora. Com a constituição desta garantia a Trapézio se compromete a pagar até o valor de R$ 73,0 mi, limitado ao prazo de resgate do CRI, tão logo seja informada sobre a inadimplência da obrigação.
Figura 1 – Reprodução da Estrutura da Operação
Dentre os fatores de risco apontados no Termo de Securitização está a possibilidade de insuficiência da alienação fiduciária das cotas, na qual o produto da venda não possibilitaria a satisfação das obrigações, restando à emissora obter recursos com a execução da fiança. Outro risco apontado diz respeito àquele inerente ao contrato de locação, a rescisão unilateral, ainda que mediante o pagamento da multa contratual estabelecida. Porém, a própria redação do risco informa que a multa pode ser reduzida com base em decisão judicial.
Uma primeira análise dos termos da operação poderá indicar que os CRI, que obtiveram classificação de risco AA pela LF Rating (reafirmada em outubro de 2012) contam com lastro e reforços de créditos suficientes para alocar a operação dentro da grade de baixo risco. Porém, a decretação da liquidação extrajudicial do locatário no começo de agosto coloca a operação em uma situação de estresse trazendo à tona algumas questões relevantes para o mercado. Algumas delas têm respostas conhecidas, pelo menos parcialmente, enquanto outras serão escritas nos próximos meses. A Uqbar levanta neste artigo algumas dessas questões e tenta analisar a situação a partir das informações disponíveis.
O que poderá ser feito pelos participantes da operação de imediato?
Tendo em vista que o Rural é a instituição custodiante do lastro do CRI, uma assembleia geral extraordinária para deliberar sobre a contratação de um novo custodiante deverá ser realizada. Até a data de publicação deste artigo, a Uqbar não teve conhecimento sobre a convocação de uma AGE.
Os CRI poderão ser amortizados antecipadamente ou resgatados?
O Termo de Securitização da operação estabelece que, mediante acordo com investidores, a Província poderá promover a amortização extraordinária e/ou resgate antecipado dos títulos. Eventos de vencimento antecipado são definidos como aqueles baseados na hipótese de inadimplemento pelo cedente da CCI (INCA II), pelo locatário (Rural) ou pela fiadora (Trapézio), e decididos como tal por uma assembleia de Investidores. Ora, a liquidação extrajudicial do Rural produziu de imediato o vencimento antecipado de todas as suas obrigações. Como será improvável que qualquer pagamento seja autorizado pelo liquidante do Rural, na existência de interesse por parte dos investidores, muito provavelmente seria possível decidir pela liquidação antecipada dos títulos.
A situação, no entanto, levanta outras questões.
Qual o valor da dívida do liquidando neste contrato?
Como se trata de uma locação típica, o valor devido pelo Rural deverá ficar limitado, por força da lei de locações (art. 4º) e do CC (art. 413), ao valor da multa. Ainda que no Termo de Securitização seja definida, como de comum acordo entre as partes, a multa no valor suficiente para liquidar a operação, é improvável que o liquidante do Banco Rural aceite tal termos. A lei de locações estabelece que, na devolução do imóvel antes do fim do prazo da locação, o locatário estará sujeito ao pagamento de uma multa que deverá ser proporcional ao prazo de cumprimento do contrato. A própria seção Fator de Risco do Termo de Securitização informa que, conforme mencionado acima, a multa pode ser reduzida com base em decisão judicial. Com efeito, o liquidante do Banco Rural poderá questionar suas dívidas na Justiça, tornando incerta sua remissão.
Qual é exatamente o valor atual dos ativos que lastreiam os CRI?
De acordo com informações obtidas no prospecto da emissão, em setembro de 2013, somente de principal dos CRI sênior, o valor nominal vincendo era de R$ 27,1 mi. Seu próximo pagamento de juros e principal, cuja frequência é anual, está programado para 22/12/13. Com a liquidação do locatário, suas obrigações foram automaticamente declaradas vencidas, inclusive o contrato de aluguel. Como a Lei de Locações estabelece que o valor da multa deve ser apenas proporcional ao prazo de cumprimento do contrato, e não o necessário para liquidar a operação, e como a construção jurisprudencial limita esta multa ao valor de três aluguéis, o que no caso seria de aproximadamente R$ 16,2 mi, o liquidante poderá arguir por um valor de multa abaixo deste teto de R$ 16,2 mi, reduzindo substancialmente o valor do ativo do Patrimônio Separado em relação ao valor vincendo dos CRI em setembro de 2013. Como o valor das obrigações garantidas sofreu uma redução, sem ainda serem declaradas inadimplidas, as garantias, tais como a alienação de cotas, se executadas, somente cobrirão o valor atual do ativo, que é inferior àquele planejado, restando uma diferença em relação aos títulos sênior e subordinados a serem liquidados.
Qual o valor da Fiança dada à Securitizadora?
O instrumento da fiança da operação estipula um limite ao cumprimento das obrigações afiançadas, quando assim for demandada, que é de R$ 73,0 mi. Contudo, segundo o instrumento de fiança, ela não foi garantida ao CRI, mas à securitizadora, no cumprimento de suas obrigações decorrentes da emissão. Com a instituição de Regime Fiduciário, quem responde pelo pagamento do CRI é o respectivo Patrimônio Separado, logo, a securitizadora não tem obrigação de prover recursos próprios para a liquidação do CRI, exceto se tiver agido em violação à lei, ao seu estatuto ou de forma negligente ou temerária na administração do Patrimônio Separado, ou com desvio do Patrimônio Separado, nos termos da lei 9.514/97. Consequentemente, se a operação não dispõe de recursos para o pagamento dos títulos, que seguem apenas a sorte do lastro da operação, uma tentativa de execução judicial da fiança para cobrir a obrigação de pagar o saldo total dos CRI, que seriam equivalentes aos alugueis até o prazo final do Contrato de Locação, poderá fracassar.
Como se pode observar, existem questões ainda sem respostas conclusivas. A Uqbar acompanhará de perto o desenlace desta operação que certamente trará importantes aprendizados para todos os participantes do mercado de securitização nacional.
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*Marcelo Cosac é advogado, sócio do escritório Tauil & Chequer Advogados.
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