quarta-feira, 9 de maio de 2012

O artigo 129 da Lei nº 11.196 (Lei do Bem) e os prestadores de serviço

VALOR – 15.02.06

 

"O artigo 129 da Lei nº 11.196 veio bem a propósito: trata-se de norma interpretativa dirigida eminentemente aos agentes fiscais"

Os contribuintes e a Lei nº 11.196

Por Sacha Calmon

 

A edição do novel artigo 129 da Lei nº 11.196/05, resultante da conversão da MP do Bem, tem suscitado diversas manifestações na imprensa. Duras críticas têm sido tecidas ao mesmo, sustentando-se que o dispositivo estaria a permitir fraudes trabalhistas e tributárias, na medida em que os empregados que prestam serviços de natureza intelectual passariam a ser contratados como pessoas jurídicas, obtendo-se, com isso, uma redução artificial da carga tributária, com prejuízos ao trabalhador que deixaria de receber décimo-terceiro salário e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), dentre outras benesses previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e na própria Constituição de 1988.

Ocorre, contudo, que a referida norma não veio a lume para permitir ou legitimar qualquer tipo de ação contra a legislação fiscal ou trabalhista. Sua única função foi a de esclarecer e orientar os agentes da fiscalização para que, no exercício de seus misteres, não desconsiderem a personalidade jurídica de sociedades legalmente constituídas para prestação de serviços intelectuais, com o fito de tributar os integrantes da sociedade (e os seus contratantes) como se fossem pessoas físicas. Para melhor situar-nos, vale conferir a dicção legal:

"Artigo 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no artigo 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - o Código Civil."

O artigo 50 do Código Civil, ao qual o dispositivo se refere, dispõe que "em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."

Ou seja: o próprio artigo 129 da Lei nº 11.196/05, ao fazer remissão ao artigo 50 do novo Código Civil, deixa claro que não foi conferido às empresas um passe-livre para a transmutação de relações formais de emprego em contratações de pessoas jurídicas, muitas vezes unipessoais. Se presentes - na relação entre contratante e contratado - os requisitos caracterizadores da relação de emprego (subordinação, pessoalidade, prestação por pessoa física, onerosidade e não-eventualidade), não se poderá falar em trabalho autônomo, desvinculado das regras da CLT, devendo o contratante arcar com as obrigações fiscais e previdenciárias decorrentes da relação de emprego.

Contudo, as empresas legalmente constituídas para a prestação de serviços intelectuais (sociedades de engenheiros, arquitetos, advogados etc) não podem ser descaracterizadas pelos agentes fiscais ao argumento de que o serviço prestado pelos profissionais aos seus contratantes seria regido pelas normas da CLT, com todos os reflexos trabalhistas e tributários daí decorrentes.

A uma, porque a presunção de existência de vínculo empregatício é de competência tão-somente do juiz do trabalho;

a duas, porque a desconsideração de personalidade jurídica somente pode ser levada a cabo pelo Poder Judiciário se presentes os requisitos legais para tanto;

a três, porque a Constituição de 1988 assegura a liberdade de empreender e contratar (artigo 170);

a quatro, porque o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN) - invocado pela fiscalização para tributar as sociedades de prestação de serviços intelectuais como se a renda fosse auferida pelas pessoas físicas que as integram - não permite a desconstrução de situações jurídicas consolidadas, mas apenas, e tão-somente, a desconsideração de atos ou negócios jurídicos simulados (o exercício dessa competência depende ainda de lei ordinária definindo os procedimentos para sua execução).

 

Não cabe à fiscalização pretender tributar as prestadoras de serviços profissionais como se não fossem pessoas jurídicas

 

Como tivemos oportunidade de averbar anteriormente, não existe nenhuma limitação - e nem pode existir - a direitos fundamentais, entre eles, o da livre iniciativa, o da auto-organização e o da liberdade de contratar conforme a lei, sem autorização constitucional. Limites contra o contribuinte nestas bases significam arbítrio, tirania, confusão, insegurança e incerteza, que devem ser veementemente repelidos no Estado democrático de direito.

Nessa toada, o artigo 129 da Lei nº 11.196/05 veio bem a propósito. Trata-se de norma interpretativa dirigida eminentemente aos agentes fiscais, que não devem se olvidar das premissas nele traçadas.

Note-se que, na justificativa de inclusão do artigo em tela na medida provisória que posteriormente foi convertida na Lei nº 11.196/05, o Senado Federal assim fundamentava a proposta:

"os princípios da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa previstos no artigo 170 da Constituição Federal asseguram a todos os cidadãos o poder de empreender e organizar seus próprios negócios. O crescimento da demanda por serviços de natureza intelectual em nossa economia requer a edição de norma interpretativa que norteie a atuação dos agentes da administração pública e as atividades dos prestadores de serviços intelectuais, esclarecendo eventuais controvérsias sobre a matéria".

A norma não consiste, portanto, em autorização ou convite à fraude, muito pelo contrário - se existente qualquer ilícito, este deve ser coibido, pelos meios próprios para tanto (Poder Judiciário e Ministério Público do Trabalho). No entanto, não cabe à fiscalização pretender tributar as sociedades prestadoras de serviços profissionais como se não fossem pessoas jurídicas. Qualquer entendimento diverso - e é justamente por isso que o dispositivo em análise calha à fiveleta - importará em atuação fiscal fora dos limites legais, violando liberdades essenciais garantidas pela Constituição da República.

 

Sacha Calmon é professor titular de direito tributário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor em direito público, advogado e parecerista.

 

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